28 de mar. de 2021

4/4 - Modelo de Integração entre Ciência e Religião

 

A 4ª e última maneira de relacionar C&R é a Integração. Este modelo é mais amplo que o do diálogo em sua unificação da ciência e da teologia. A integração dá um passo além, a fim de alcançar maior unidade conceitual. Por esse motivo entende-se que seja um dos maiores desafios, talvez o alvo a ser atingido.

Como exemplo desta abordagem cito Charles Raven, teólogo britânico, que insiste que devemos “contar uma única história que trate de todo o universo como uno e indivisível”. Assim, ele argumenta que os mesmos métodos básicos devem ser usados em todos os aspectos da busca humana por conhecimento, seja religioso ou científico. Raven resiste vigorosamente a qualquer tentativa de dividir o universo em componentes “espirituais” e “físicos”.

        Apesar de considerar o modelo de diálogo mais satisfatório, Barbour é muito simpático a essa abordagem, e tende a apresentar as 4 opções como estágios de uma jornada intelectual de descoberta, semelhante a uma evolução natural do intelecto (Conflito < Independência < Diálogo < Integração). McGrath faz uma analogia com que chama de “viajante intelectual”, como no clássico livro de John Bunyan (O Peregrino), em que o estudante geralmente começa com Conflito entre ciência e religião por conta de seu conhecimento incipiente de ambas as esferas do conhecimento; seguido por um breve e insatisfatório flerte com a Independência, para iniciar uma fase pacífica e conciliatória; e finalmente encontrar um local de descanso satisfatório no Diálogo ou em alguma forma de Integração. Quantas histórias semelhantes a esta nós podemos encontrar?

Para Barbour, os modelos de Conflito e Independência estão errados, enquanto as abordagens de Diálogo e Integração estão corretas.

Referências:

BARBOUR, Ian. G. Quando a ciência encontra a religião: Inimigas, Estranhas ou Parceiras. São Paulo: Ed. Cultrix, 2000.

GARROS, T. Ciência e Religião em Perspectiva: inimigas mortais ou amizade a ser (re)descoberta? – Parte 2. 2017. Disponível em: https://www.cristaosnaciencia.org.br/ciencia-e-religiao-em-perspectiva-parte-2/. Acesso em: 28 fev 2021.

MCGRATH, A. Ciência e religião: fundamentos para o diálogo. Tradução de Roberto Covolan. - 1. Ed. – Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020. 352 p.

STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY. Religion and Science. Disponível em  https://plato.stanford.edu/entries/religion-science/ Acesso em 14 mar 2021.


3/4 - Modelo de Diálogo entre Ciência e Religião

Nós vivemos na “era da informação”, sendo cada vez mais raro a publicação de estudos feitos por apenas um pesquisador. Um estudo de 2020 aponta que cresceu nos últimos anos o número de publicações científicas assinadas por mais de mil autores (um fenômeno conhecido como hiperautoria). Existem diversas explicações para este fenômeno (pesquisas globais e colaborativas, uso de equipes e equipamentos, redução de custos, etc). Assim, o pesquisador solitário está se tornando cada vez menos viável para grandes inovações científicas. (ANDRADE, 2020 – FAPESP).

Seguindo este pensamento colaborativo, o modelo do diálogo é uma terceira maneira de entender a relação entre Ciência e Religião, levando a uma melhor compreensão mútua entre ambas.

O filósofo americano Alvin Plantinga, em seu livro Ciência, religião enaturalismo: onde está o conflito? (2018 - Editora Vida Nova) diz que “apesar de haver um conflito superficial, há uma convergência profunda entre a ciência e a religião teísta”; e, apesar de haver uma convergência superficial, há um conflito profundo entre a ciência e o naturalismo” (que ele chama de quase-religião). Essa observação nos leva à pergunta: “Há divergências entre as duas esferas?”. E a resposta é que sim, há divergências sim. Mas acredita-se também que esses dois parceiros de conversação podem aprender um com o outro.

Alister McGrath, químico, biofísico e teólogo, um dos mais maiores autores da atualidade no estudo de ciência e religião diz que: “Nem a ciência nem a religião podem fornecer uma descrição total da realidade. No entanto, juntas elas podem oferecer uma visão estereoscópica da realidade negada àqueles que se limitam à perspectiva de apenas uma disciplina” (MCGRATH, 2019 – pg 17). É no mínimo questionável um cientista limitar suas perspectivas e potencialidades em conhecer as realidades disponíveis. McGrath ainda argumenta que o diálogo entre C&R nos permite apreciar identidades, forças e limites distintos de cada parceiro de conversa, e nos oferece uma compreensão mais profunda das coisas do que a religião ou a ciência poderiam oferecer por si só.” (MCGRATH, 2019 - pag. 20). Além disso, McGrath, que é professor e diretor do Centro Ian Ramsey de Ciência e Religião da Universidade de Oxford, sugere que ciência e religião são capazes de interagir em um diálogo significativo sobre algumas das grandes questões da vida, mas não como uma conversa acolhedora e não crítica, muitas vezes tendendo a uma agradável, mas injustificada assimilação de ideias. A ideia dele é um diálogo robusto e desafiador (quase que uma banca de doutoramento), investigando questões profundas e potencialmente ameaçadoras sobre a autoridade e os limites de cada participante e cada disciplina.

A ciência pode purificar a religião do erro e da superstição, a religião pode purificar a ciência da idolatria e dos falsos absolutos”. Nesta célebre frase, o papa João Paulo II parece incentivar o diálogo entre C&R, ao passo que o Papa Bento XVI propõe, por sua vez, uma relação de autonomia e distinção, lembrando mais a abordagem da independência, mas nunca uma oposição (AGOSTINI, 2013). Outra frase constantemente citada é “a ciência sem a religião é manca, a religião sem a ciência é cega”. Essa frase é do físico e ganhador do prêmio Nobel Albert Einstein e, apesar de seu conceito peculiar de religião, traz robustez à possibilidade do diálogo ao invés do conflito.

Após essas duas famosas citações no debate de C&R, pode-se dizer que as explicações científicas e religiosas assumem formas diferentes, mesmo quando refletem sobre as mesmas observações. Assim, abordagens dialogais permitem ou incentivam o aprimoramento ético, estético e espiritual de determinadas questões e, pensando em potencializar a construção do conhecimento, é desejável fomentar o diálogo ao invés do conflito. Ian Barbour, o físico e teólogo americano proponente desta tipologia em 4 modelos, considera esse provavelmente o modelo mais satisfatório do possível leque de abordagens.

Referências:

AGOSTINI, N. Igreja católica e ciências: por uma cultura do diálogo e da vida. Revista Pistis & Praxis: Teologia e Pastoral, vol. 5, núm. 1, enero-junio, 2013, pp. 185-205.

ANDRADE, R.O. Escrito a muitas mãos. Pesquisa Fapesp, n. 289, 2020. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/escrito-a-muitas-maos/ . Acesso em 13 mar 2021.

BARBOUR, Ian. G. Quando a ciência encontra a religião: Inimigas, Estranhas ou Parceiras. São Paulo: Ed. Cultrix, 2000.

GARROS, T. Ciência e Religião em Perspectiva: inimigas mortais ou amizade a ser (re)descoberta? – Parte 2. 2017. Disponível em: https://www.cristaosnaciencia.org.br/ciencia-e-religiao-em-perspectiva-parte-2/. Acesso em: 28 fev 2021.

MCGRATH, A. Ciência e religião: fundamentos para o diálogo. Tradução de Roberto Covolan. - 1. Ed. – Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020. 352 p.

STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY. Religion and Science. Disponível em  https://plato.stanford.edu/entries/religion-science/ Acesso em 14 mar 2021.


2/4 - Modelo de Independência entre Ciência e Religião

 

As controvérsias identificadas no modelo de conflito geram desconfiança e questionamentos. Pensando em “preservar a integridade” tanto da ciência quanto da religião, é possível identificar uma segunda abordagem dessa relação, a da Independência. Essa insiste que C&R são esferas da realidade completamente independentes e autônomas, com suas próprias regras e linguagens. “A ciência tem pouco a dizer sobre crenças religiosas e a religião tem poucos a dizer sobre o estudo científico (MCGRATH)”.

Um dos mais conhecidos representantes dessa abordagem é o Paleontólogo Stephen Jay Gould, que propôs os “Magistérios Não Interferentes”, onde ciência e religião ocupam domínios ou áreas de autoridade/competência bem-definidos, que não se sobrepõem ou se cruzam. A regra de Gould é clara: esses dois magistérios, a ciência e a religião (que não cobrem toda a experiência humana), lidam com assuntos diferentes, e então não devem se intrometer na competência alheia. O físico brasileiro Marcelo Gleiser é outro importante representante desse modelo. 

É comum ouvirmos que a ciência se interessa pelo tempo e a religião, pela eternidade; a ciência estuda como funciona o céu e a religião, como ir para o céu. Nós utilizamos com frequência uma variante dessa abordagem dada pelo teólogo americano Langdon Gilkey (1959 – Criador do céu e da terra) que diz que as Ciências Naturais estão preocupadas em fazer perguntas sobre o “como” (lidando com causas secundárias = interações dentro da esfera da natureza), enquanto a teologia faz perguntas sobre o “por que” (relacionadas com as causas primárias = origem e propósito fundamentais da natureza).

Ao olhar dessa forma independente nenhuma conversa é necessária e nem mesmo possível, nem o conflito se justifica, o que caracteriza essa abordagem, de certa forma, como pacificadora. Esse pacifismo resulta numa grande popularidade nos círculos teológicos e científicos, pois fornece liberdade para acreditar e pensar no que prezam os atores em seus próprios campos (ou magistérios) sem forçar uma relação entre eles.

Entretanto, Barbour aponta que a abordagem de independência inevitavelmente compartimentaliza a realidade uma vez que não experimentamos a realidade dessa forma, tão nitidamente dividida, mas em sua totalidade e interconectividade. Ele defende que estes magistérios não podem evitar algum grau de sobreposição e interação, ou seja, eles não são completamente separados.

Assim, podemos perceber a postura de independência muito menos problemática que a abordagem do conflito, embora incompleta. Em tempos de polarização de ideias e extremismos em todas as áreas da nossa vida, incluindo grupos de whatsapp da família, um simples olhar conciliador já fornece benefícios mínimos para o desenvolvimento basal de ambos os campos de estudo.


Referências

BARBOUR, Ian. G. Quando a ciência encontra a religião: Inimigas, Estranhas ou Parceiras. São Paulo: Ed. Cultrix, 2000.

GARROS, T. Ciência e Religião em Perspectiva: inimigas mortais ou amizade a ser (re)descoberta? – Parte 1. 2017. Disponível em: https://www.cristaosnaciencia.org.br/ciencia-e-religiao-em-perspectiva-parte-1/. Acesso em: 28 fev 2021.

MCGRATH, A. Ciência e religião: fundamentos para o diálogo. Tradução de Roberto Covolan. - 1. Ed. – Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020. 352 p.

NUMBERS, RL. Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre religião e ciência. Tradução de Aline Kaehler – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020. 336 p.

STANFORD ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY. Religion and Science. Disponível em  https://plato.stanford.edu/entries/religion-science/ Acesso em 14 mar 2021.


31 de jan. de 2021

1/4 - Modelo do Conflito entre Ciência e Religião

Dois punhos cerrados se chocando sob a palavra CONFLITO

Talvez este seja um dos 4 modelos que mais demandará linhas neste blog pois, historicamente, o modelo de “conflito” é o entendimento mais significativo da relação entre ciência e religião, muitas vezes colocado até como “guerra”. Mesmo que seu apelo tenha diminuído consideravelmente em um nível mais acadêmico o modelo de conflito continua a ser profundamente influente no meio popular. Há quem defenda que este tipo de interação seja, não só inevitável, mas inerente à relação ciência e religião.

Dois historiadores do final do século XIX levam os créditos pela popularização dessa abordagem. São eles:

  • John William Draper (1811-1882) – médico, químico e historiador, fundador da Escola de Medicina da Universidade de Nova Iorque -> obra: A história do conflito entre religião e ciência (1874).
  •  Andrew Dickson White (1832-1918) – historiador, cofundador da Universidade Cornell -> obra: A história do conflito entre a ciência e teologia na cristandade (1896).

Entretanto, o historiador da ciência Ronald Numbers diz que “essa guerra existe principalmente na mente de historiadores dados a clichês”. Diz ainda, com base em relatos de antigos historiadores da ciência, que Draper e White mais fizeram propaganda do que história (NUMBERS, 2020). O problema é que esta mensagem raramente sai da “torre de marfim”, o famoso espaço intelectual deliberadamente desvinculado do mundo cotidiano.

Assim, resta que as pessoas não religiosas “sabem” que religião organizada sempre se opôs ao progresso científico (visto nos ataques a Galileu e Darwin, por exemplo). Já o público religioso “sabe” que a ciência liderou a derrocada da fé e matou Deus (por meio do naturalismo e antibiblicismo). E é justamente esse o intuito de Numbers no recente lançamento da Thomas Nelson Brasil em parceria com a ABC2, o livro intitulado “Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião”, que contou com a colaboração de diversos professores e historiadores (entre religiosos cristãos, judeus, islâmicos, bem como agnósticos e ateus) para desconstruir alguns mitos e falsas afirmações que tanto contribuíram para o sucesso da sensação de conflito entre ciência e religião. Este livro é imprescindível para quem quer conhecer um pouco mais sobre esse campo do conhecimento.

soldier dawkins with a war helmet

Um dos mais conhecidos representantes e entusiastas desta postura bélica é o Biólogo evolutivo RICHARD DAWKINS. Para ele, ciência e religião são implacavelmente opostas. Embora Dawkins seja o mais conhecido representante dessa abordagem e ser um ateu militante (Luiz Felipe Pondé o chamaria de Ateu Toddynho, se referindo àqueles de postura chata e arrogante), Alister Mcgrath, químico, biofísico e teólogo, uma dos maiores estudiosos recentes das interações entre ciência e religião, diz que esse modelo não se restringe a cientistas antirreligiosos (não só ateus, mas antirreligiosos), sendo este posicionamento de repulsa também muito comum em grupos religiosos (e aí podemos aplicar o mesmo conceito de Pondé, o de Religioso Toddynho). Não são raras as declarações que colocam o evolucionismo moderno, por exemplo, como a continuação da longa guerra de Satanás contra Deus.

O físico brasileiro Marcelo Gleiser tem uma postura totalmente diferente. Ele argumenta que a “guerra” entre ciência e religião é fabricada. Sobre religiosos bélicos, Gleiser diz: "Eles consideram a ciência como o inimigo, porque têm um modo muito antiquado de pensar sobre ciência e religião, no qual todos os cientistas tentam matar Deus", disse. "A ciência não mata Deus", ele completa. Gleiser, agnóstico, ganhador do Prêmio Templeton devido ao seu olhar conciliador, lamenta que os "novos ateus" tenham ampliado a distância com a religião, especialmente o cientista britânico Richard Dawkins.

O problema é que, apesar de suas confusões epistemológicas acerca de fato e ciência recentemente expostas nas redes sociais, Dawkins influenciou e até hoje ainda influencia muita gente. Não questiono sua capacidade e qualidade científica, mas sua postura enquanto divulgador de ciência, em que a agressividade desproporcional pode atrapalhar e afastar mais do que agregar. Recentemente, o efeito negativo de Dawkins para o amplo debate que envolve Ciência e Religião foi demonstrado estatisticamente por Unsworth e Voas (2021).

O fato é que a Tese do Conflito é mais uma ideia que vive e se fortalece em uma bolha, que pode estar prestes a estourar. Para a Dra. Jennifer Wiseman, astrofísica sênior da NASA, muito do que aparece hoje como conflito, ou que é assim descrito, está no campo da antropologia e das ciências sociais. Já McGrath, diz que o que mantém o modelo de conflito são questões muito específicas inseridas nas ciências naturais, principalmente o ensino de evolução nas escolas e questões de modificação terapêutica de genes.

É importante saber que o maior mito na história da ciência e religião é de que elas estão em constante conflito. É saudável e honesto para o debate perceber e reconhecer que o conflito não é a única maneira de relacionar ciência e religião. Por fim, existem cientistas que vão além do conflito. O já citado Marcelo Gleiser é um ótimo exemplo de influência com perspectivas menos (ou nada) combativas, que promovem a independência, o diálogo ou a integração entre estes dois campos da realidade humana, bem como os também já citados Jennifer Wiseman e Alister McGrath, e vários outros como Francis Collins, Andrew Briggs, Malcolm Jeeves, Débora Haarsma, o saudoso Sir John Polkinhorne, o brazuca Roberto Covolan, e tantos outros.

Referências:

BARBOUR, Ian. G. Quando a ciência encontra a religião: Inimigas, Estranhas ou Parceiras. São Paulo: Ed. Cultrix, 2000.

GARROS, T. Ciência e Religião em Perspectiva: inimigas mortais ou amizade a ser (re)descoberta? – Parte 1. 2017. Disponível em: https://www.cristaosnaciencia.org.br/ciencia-e-religiao-em-perspectiva-parte-1/. Acesso em: 28 fev 2021.

MCGRATH, A. Ciência e religião: fundamentos para o diálogo. Tradução de Roberto Covolan. - 1. Ed. – Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020. 352 p.

NUMBERS, RL. Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre religião e ciência. Tradução de Aline Kaehler – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020. 336 p.

UNSWORTH, A.; VOAS, D. The Dawkins effect? Celebrity scientists, (non)religious publics and changed attitudes to Evolution. Public Understanding of Science, 1–21, 2021. DOI: https://doi.org/10.1177/0963662521989513

WISEMAN, J. Entrevista. In: A ciência não prova Deus, mas enriquece a fé de quem acredita: uma entrevista com Jennifer Wiseman. Gazeta do Povo, ed. 30 mar 2019. Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/tubo-de-ensaio/entrevista-jennifer-wiseman/ Acesso em 14 Mar 2021.


16 de jan. de 2021

Os 4 modelos de Barbour para a relação Ciência e Religião

 


Como ciência e religião se relacionam (ou deveriam se relacionar) é uma questão altamente complexa e controversa. O assunto é extenso, mas hoje vou apenas mostrar a proposta de IAN BARBOUR (1923–2013), um físico e teólogo americano que revolucionou os estudos sobre ciência e religião ao identificar/propor quatro abordagens para relacionar as duas áreas.


1 - Conflito (talvez o mais comum para quem não procura entender nenhuma ou apenas uma das duas esferas, infelizmente);

Talvez este seja um dos 4 modelos que mais demandará linhas neste blog pois, historicamente, o modelo de “conflito” é o entendimento mais significativo da relação entre ciência e religião, muitas vezes colocado até como “guerra”. Mesmo que seu apelo tenha diminuído consideravelmente em um nível mais acadêmico o modelo de conflito continua a ser profundamente influente no meio popular. Há quem defenda que este tipo de interação seja, não só inevitável, mas inerente à relação ciência e religião.

Dois historiadores do final do século XIX levam os créditos pela popularização dessa abordagem. São eles:

  • John William Draper (1811-1882) – médico, químico e historiador, fundador da Escola de Medicina da Universidade de Nova Iorque -> obra: A história do conflito entre religião e ciência (1874).
  •  Andrew Dickson White (1832-1918) – historiador, cofundador da Universidade Cornell -> obra: A história do conflito entre a ciência e teologia na cristandade (1896).

Entretanto, o historiador da ciência Ronald Numbers diz que “essa guerra existe principalmente na mente de historiadores dados a clichês”. Diz ainda, com base em relatos de antigos historiadores da ciência, que Draper e White mais fizeram propaganda do que história (NUMBERS, 2020). O problema é que esta mensagem raramente sai da “torre de marfim”, o famoso espaço intelectual deliberadamente desvinculado do mundo cotidiano.

Assim, resta que as pessoas não religiosas “sabem” que religião organizada sempre se opôs ao progresso científico (visto nos ataques a Galileu e Darwin, por exemplo). Já o público religioso “sabe” que a ciência liderou a derrocada da fé e matou Deus (por meio do naturalismo e antibiblicismo). E é justamente esse o intuito de Numbers no recente lançamento da Thomas Nelson Brasil em parceria com a ABC2, o livro intitulado “Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião”, que contou com a colaboração de diversos professores e historiadores (entre religiosos cristãos, judeus, islâmicos, bem como agnósticos e ateus) para desconstruir alguns mitos e falsas afirmações que tanto contribuíram para o sucesso da sensação de conflito entre ciência e religião. Este livro é imprescindível para quem quer conhecer um pouco mais sobre esse campo do conhecimento.

Um dos mais conhecidos representantes e entusiastas desta postura bélica é o Biólogo evolutivo RICHARD DAWKINS. Para ele, ciência e religião são implacavelmente opostas. Embora Dawkins seja o mais conhecido representante dessa abordagem e ser um ateu militante (Luiz Felipe Pondé o chamaria de Ateu Toddynho, se referindo àqueles de postura chata e arrogante), Alister Mcgrath, químico, biofísico e teólogo, uma dos maiores estudiosos recentes das interações entre ciência e religião, diz que esse modelo não se restringe a cientistas antirreligiosos (não só ateus, mas antirreligiosos), sendo este posicionamento de repulsa também muito comum em grupos religiosos (e aí podemos aplicar o mesmo conceito de Pondé, o de Religioso Toddynho). Não são raras as declarações que colocam o evolucionismo moderno, por exemplo, como a continuação da longa guerra de Satanás contra Deus.

O físico brasileiro Marcelo Gleiser tem uma postura totalmente diferente. Ele argumenta que a “guerra” entre ciência e religião é fabricada. Sobre religiosos bélicos, Gleiser diz: "Eles consideram a ciência como o inimigo, porque têm um modo muito antiquado de pensar sobre ciência e religião, no qual todos os cientistas tentam matar Deus", disse. "A ciência não mata Deus", ele completa. Gleiser, agnóstico, ganhador do Prêmio Templeton devido ao seu olhar conciliador, lamenta que os "novos ateus" tenham ampliado a distância com a religião, especialmente o cientista britânico Richard Dawkins.

O problema é que, apesar de suas confusões epistemológicas acerca de fato e ciência recentemente expostas nas redes sociais, Dawkins influenciou e até hoje ainda influencia muita gente. Não questiono sua capacidade e qualidade científica, mas sua postura enquanto divulgador de ciência, em que a agressividade desproporcional pode atrapalhar e afastar mais do que agregar. Recentemente, o efeito negativo de Dawkins para o amplo debate que envolve Ciência e Religião foi demonstrado estatisticamente por Unsworth e Voas (2021).

O fato é que a Tese do Conflito é mais uma ideia que vive e se fortalece em uma bolha, que pode estar prestes a estourar. Para a Dra. Jennifer Wiseman, astrofísica sênior da NASA, muito do que aparece hoje como conflito, ou que é assim descrito, está no campo da antropologia e das ciências sociais. Já McGrath, diz que o que mantém o modelo de conflito são questões muito específicas inseridas nas ciências naturais, principalmente o ensino de evolução nas escolas e questões de modificação terapêutica de genes.

É importante saber que o maior mito na história da ciência e religião é de que elas estão em constante conflito. É saudável e honesto para o debate perceber e reconhecer que o conflito não é a única maneira de relacionar ciência e religião. Por fim, existem cientistas que vão além do conflito. O já citado Marcelo Gleiser é um ótimo exemplo de influência com perspectivas menos (ou nada) combativas, que promovem a independência, o diálogo ou a integração entre estes dois campos da realidade humana, bem como os também já citados Jennifer Wiseman e Alister McGrath, e vários outros como Francis Collins, Andrew Briggs, Malcolm Jeeves, Débora Haarsma, o saudoso Sir John Polkinhorne, o brazuca Roberto Covolan, e tantos outros.

2 - Independência (entre o anterior e este, prefiro este);

As controvérsias identificadas no modelo de conflito geram desconfiança e questionamentos. Pensando em “preservar a integridade” tanto da ciência quanto da religião, é possível identificar uma segunda abordagem dessa relação, a da Independência. Essa insiste que C&R são esferas da realidade completamente independentes e autônomas, com suas próprias regras e linguagens. “A ciência tem pouco a dizer sobre crenças religiosas e a religião tem poucos a dizer sobre o estudo científico (MCGRATH)”.

Um dos mais conhecidos representantes dessa abordagem é o Paleontólogo Stephen Jay Gould, que propôs os “Magistérios Não Interferentes”, onde ciência e religião ocupam domínios ou áreas de autoridade/competência bem-definidos, que não se sobrepõem ou se cruzam. A regra de Gould é clara: esses dois magistérios, a ciência e a religião (que não cobrem toda a experiência humana), lidam com assuntos diferentes, e então não devem se intrometer na competência alheia. O físico brasileiro Marcelo Gleiser é outro importante representante desse modelo. 

É comum ouvirmos que a ciência se interessa pelo tempo e a religião, pela eternidade; a ciência estuda como funciona o céu e a religião, como ir para o céu. Nós utilizamos com frequência uma variante dessa abordagem dada pelo teólogo americano Langdon Gilkey (1959 – Criador do céu e da terra) que diz que as Ciências Naturais estão preocupadas em fazer perguntas sobre o “como” (lidando com causas secundárias = interações dentro da esfera da natureza), enquanto a teologia faz perguntas sobre o “por que” (relacionadas com as causas primárias = origem e propósito fundamentais da natureza).

Ao olhar dessa forma independente nenhuma conversa é necessária e nem mesmo possível, nem o conflito se justifica, o que caracteriza essa abordagem, de certa forma, como pacificadora. Esse pacifismo resulta numa grande popularidade nos círculos teológicos e científicos, pois fornece liberdade para acreditar e pensar no que prezam os atores em seus próprios campos (ou magistérios) sem forçar uma relação entre eles.

Entretanto, Barbour aponta que a abordagem de independência inevitavelmente compartimentaliza a realidade uma vez que não experimentamos a realidade dessa forma, tão nitidamente dividida, mas em sua totalidade e interconectividade. Ele defende que estes magistérios não podem evitar algum grau de sobreposição e interação, ou seja, eles não são completamente separados.

Assim, podemos perceber a postura de independência muito menos problemática que a abordagem do conflito, embora incompleta. Em tempos de polarização de ideias e extremismos em todas as áreas da nossa vida, incluindo grupos de whatsapp da família, um simples olhar conciliador já fornece benefícios mínimos para o desenvolvimento basal de ambos os campos de estudo.

3 - Diálogo (vejo com bons olhos por seu equilíbrio e pacificação; e é meu atual sonho de consumo);

Nós vivemos na “era da informação”, sendo cada vez mais raro a publicação de estudos feitos por apenas um pesquisador. Um estudo de 2020 aponta que cresceu nos últimos anos o número de publicações científicas assinadas por mais de mil autores (um fenômeno conhecido como hiperautoria). Existem diversas explicações para este fenômeno (pesquisas globais e colaborativas, uso de equipes e equipamentos, redução de custos, etc). Assim, o pesquisador solitário está se tornando cada vez menos viável para grandes inovações científicas. (ANDRADE, 2020 – FAPESP).

Seguindo este pensamento colaborativo, o modelo do diálogo é uma terceira maneira de entender a relação entre Ciência e Religião, levando a uma melhor compreensão mútua entre ambas.

O filósofo americano Alvin Plantinga, em seu livro Ciência, religião e naturalismo: onde está o conflito? (2018 - Editora Vida Nova) diz que “apesar de haver um conflito superficial, há uma convergência profunda entre a ciência e a religião teísta”; e, apesar de haver uma convergência superficial, há um conflito profundo entre a ciência e o naturalismo” (que ele chama de quase-religião). Essa observação nos leva à pergunta: “Há divergências entre as duas esferas?”. E a resposta é que sim, há divergências sim. Mas acredita-se também que esses dois parceiros de conversação podem aprender um com o outro.

Alister McGrath, químico, biofísico e teólogo, um dos mais maiores autores da atualidade no estudo de ciência e religião diz que: “Nem a ciência nem a religião podem fornecer uma descrição total da realidade. No entanto, juntas elas podem oferecer uma visão estereoscópica da realidade negada àqueles que se limitam à perspectiva de apenas uma disciplina” (MCGRATH, 2019 – pg 17). É no mínimo questionável um cientista limitar suas perspectivas e potencialidades em conhecer as realidades disponíveis. McGrath ainda argumenta que o diálogo entre C&R nos permite apreciar identidades, forças e limites distintos de cada parceiro de conversa, e nos oferece uma compreensão mais profunda das coisas do que a religião ou a ciência poderiam oferecer por si só.” (MCGRATH, 2019 - pag. 20). Além disso, McGrath, que é professor e diretor do Centro Ian Ramsey de Ciência e Religião da Universidade de Oxford, sugere que ciência e religião são capazes de interagir em um diálogo significativo sobre algumas das grandes questões da vida, mas não como uma conversa acolhedora e não crítica, muitas vezes tendendo a uma agradável, mas injustificada assimilação de ideias. A ideia dele é um diálogo robusto e desafiador (quase que uma banca de doutoramento), investigando questões profundas e potencialmente ameaçadoras sobre a autoridade e os limites de cada participante e cada disciplina.

A ciência pode purificar a religião do erro e da superstição, a religião pode purificar a ciência da idolatria e dos falsos absolutos”. Nesta célebre frase, o papa João Paulo II parece incentivar o diálogo entre C&R, ao passo que o Papa Bento XVI propõe, por sua vez, uma relação de autonomia e distinção, lembrando mais a abordagem da independência, mas nunca uma oposição (AGOSTINI, 2013). Outra frase constantemente citada é “a ciência sem a religião é manca, a religião sem a ciência é cega”. Essa frase é do físico e ganhador do prêmio Nobel Albert Einstein e, apesar de seu conceito peculiar de religião, traz robustez à possibilidade do diálogo ao invés do conflito.

Após essas duas famosas citações no debate de C&R, pode-se dizer que as explicações científicas e religiosas assumem formas diferentes, mesmo quando refletem sobre as mesmas observações. Assim, abordagens dialogais permitem ou incentivam o aprimoramento ético, estético e espiritual de determinadas questões e, pensando em potencializar a construção do conhecimento, é desejável fomentar o diálogo ao invés do conflito. Ian Barbour, o físico e teólogo americano proponente desta tipologia em 4 modelos, considera esse provavelmente o modelo mais satisfatório do possível leque de abordagens.

4 - Integração (sinceramente, ainda tenho dúvidas sobre esta abordagem, mas existem bons defensores).

A 4ª e última maneira de relacionar C&R é a Integração. Este modelo é mais amplo que o do diálogo em sua unificação da ciência e da teologia. A integração dá um passo além, a fim de alcançar maior unidade conceitual. Por esse motivo entende-se que seja um dos maiores desafios, talvez o alvo a ser atingido.

Como exemplo desta abordagem cito Charles Raven, teólogo britânico, que insiste que devemos “contar uma única história que trate de todo o universo como uno e indivisível”. Assim, ele argumenta que os mesmos métodos básicos devem ser usados em todos os aspectos da busca humana por conhecimento, seja religioso ou científico. Raven resiste vigorosamente a qualquer tentativa de dividir o universo em componentes “espirituais” e “físicos”.

        Apesar de considerar o modelo de diálogo mais satisfatório, Barbour é muito simpático a essa abordagem, e tende a apresentar as 4 opções como estágios de uma jornada intelectual de descoberta, semelhante a uma evolução natural do intelecto (Conflito < Independência < Diálogo < Integração). McGrath faz uma analogia com que chama de “viajante intelectual”, como no clássico livro de John Bunyan (O Peregrino), em que o estudante geralmente começa com Conflito entre ciência e religião por conta de seu conhecimento incipiente de ambas as esferas do conhecimento; seguido por um breve e insatisfatório flerte com a Independência, para iniciar uma fase pacífica e conciliatória; e finalmente encontrar um local de descanso satisfatório no Diálogo ou em alguma forma de Integração. Quantas histórias semelhantes a esta nós podemos encontrar?

Para Barbour, os modelos de Conflito e Independência estão errados, enquanto as abordagens de Diálogo e Integração estão corretas.


Referências:

AGOSTINI, N. Igreja católica e ciências: por uma cultura do diálogo e da vida. Revista Pistis & Praxis: Teologia e Pastoral, vol. 5, núm. 1, enero-junio, 2013, pp. 185-205.

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